domingo, 8 de abril de 2012

A cidade da crise




2 de Abril 2012



A cidade da crise


A cidade da crise A cidade de todas as crises cíclicas imensas universais gigantescas Em cada esquina cresce a serpente humana dos que procuram alimento para sobreviver A cidade que não se importa que cresce violenta grotesca terrível inabalável na sua petrificada violência de ferro cimento vidro e betão Os habitantes da minha cidade transformaram-se de novo para voltarem a ser os habitantes da cidade do poeta Esfomeados ordenados desorientados organizados em grupos descansam por instantes do seu enorme desespero A cidade está parada e estrangula toda a fé A cidade é implacável e irredutível nesta sua escuridão O poder da cidade encontra-se nos desejos que ela fabrica Quem a pretende governar quem a pensa poder governar é engolido num frenesi imenso que faz delirar a cidade A máquina corrupta teatral mediática que se reconstrói que se reinventa que se impõe que é de todos pois todos assim a fizeram crescer A cidade diz-me tudo o que escuto ao caminhar A cidade das promessas conta desta forma a trágica história Hospitais estradas escolas pontes ferrovias túneis viadutos museus bibliotecas avenidas estações aeroportos parques aquedutos portos prédios estradas e autoestradas ligações ferroviárias o paraíso cinzento-escuro do asfalto e dos automóveis amigos brilhantes velozes e reluzentes A cidade engorda de prazer ao som vibrante do objeto poluente que lhe alimenta as entranhas Viva o automóvel e cresça a cidade veloz à velocidade estonteante do objeto rodante A cidade das estradas e autoestradas e avenidas ruas largos cruzamentos rotundas poesia urbana poesia mecânica poesia metálica complexa vascular arterial Cimento a poesia do ferro do aço e do cimento A cidade visionária transformadora imperial e futurista A cidade dos que vivem na rua porque a cidade é o lar dos que vivem na rua dos que vivem no bairro dos que vivem agora e dos que ontem viveram na rua A cidade será sempre o seu lar A cidade dos civis e dos militares A cidade dos que agradecem terem regressado à cidade Viajo anónimo no meio de milhões no meio dos sonhos de milhões A cidade será sempre a cidade de todas as esperanças e não apenas a cidade de uma só esperança A cidade engole os habitantes e tira mais depressa do que oferece A cidade engole os habitantes que foram engolidos pelos objetos rolantes Os habitantes já não são os donos das ruas da cidade Os automóveis tomaram conta das ruas matando-as tomaram conta da grande avenida da autoestrada do viaduto da gigantesca galeria e fizeram renascer a cidade como um esgoto de escuras entranhas Esta é a nova cidade do vidro da transparência do andaime da forma paralelepipédica da forma prismática vertical imensa Os novos pobres chegam à cidade e tomam conta dos seus pedaços mais sujos mais negros mais distantes e degradantes A cidade é uma tragédia e tudo isto me é comunicado por uma voz com rosto de homem idoso perdido de cabelos brancos marcado por muitas rugas num rosto queimado barba longa grisalha olhos azuis e profundas olheiras A cidade que já não é industrial que já não é esperançosa que já não é o que foi mas que deseja ser tudo aquilo que ainda pode ser O homem pertence à cidade e alimenta o génio e a grandeza da cidade E o homem é louco e a cidade é o homem louco que a esventra destrói constrói reconstrói Recria tudo o que na cidade ensandece recria a desgraça do subúrbio recria redesenha reconstrói reinventa faz crescer faz desaparecer destrói para segregar para desumanizar mais uma vez outra vez uma décima vez uma centésima vez uma milésima vez uma centésima milionésima vez A cidade dos cada vez mais ricos e poderosos que afasta os desfavorecidos para guetos e subúrbios cada vez mais distantes A cidade afasta os habitantes a quem destrói todas as raízes para se descaracterizar para rejuvenescer orgânica desagregada descaracterizada desumana e formatada Renasce não-cidade renasce coisa não-humana A cidade urbana do desastre A cidade automóvel caótica horrífica poluída suburbana catastrófica cinzenta escura quente inexpressiva corroída louca e que enlouquece Esta é a cidade a quem o coração foi arrancado vezes e vezes e vezes sem conta A estrada está entranhada no centro do coração da cidade A estrada corta esventra e destrói o que resta do coração da cidade Toda a cidade é do homem ditador que a deseja e quer deixar riscado para sempre o coração da cidade Viva o alcatrão antissocial viva o cimento o imenso o anti-humano viva tudo o que é catastrófico para engrandecer a nova alma da cidade porque a cidade deve ser coisa sem alma Viva o império do alcatrão do cimento do petróleo da mobilidade que agrilhoa e divide a cidade que a esmigalha que a destroça e que vira a cidade contra aqueles a quem a cidade deveria servir Constrói constrói destrói reconstrói destrói constrói reconstrói destrói constrói destrói reconstrói destrói destrói desumaniza intimida desagrega destrói destrói constrói reconstrói Viva o império da cidade Viva o império do homem-cinzento do homem autoestrada do homem que queria ser cidade que queria ser esgoto porque o homem destrói destrói reconstrói devasta constrói definha definha e a cidade definha Cresce mas morre Cresce mas morre cada dia mais um pedaço Cresce mas fica todos os dias cada vez mais minúscula cada vez mais parada mais cinzenta mais morta mais inacabada mais museu A cidade dos ciclos e dos pesadelos e dos desesperos dos castanhos e cinzentos não mais dos verdes e dos azuis Para que serve a cidade para que serve este pesadelo gigantesco inerte e esventrado desumano que agora volta a petrificar todos os que nela habitam O homem mata a cidade e a cidade retribui O homem acredita que o que é moderno é melhor e a cidade retribui A idade de tudo o que era sagrado na cidade acabou e a cidade retribuirá Onde se encontra o que há de sagrado no coração da cidade onde se encontra o sagrado na cidade O que desejamos da cidade Todos a vandalizam Todos a matam e a cidade matará o homem que mata a cidade Esta é a voz com rosto de velho cansado ambicioso ganancioso cruel de olhos castanhos fundos de olhar desumano que deseja construir o coração no cidade A cidade está estripada e deve ser destruída para que se possa vingar contra quem a desejou assim Eis a cidade desumana que não é velha nem é nova Esta é a cidade do ser-humano Esta é a cidade que caminha e faz caminhar Os habitantes da minha cidade começam a acordar Os habitantes da minha cidade não percebem esta momentânea filosofia de paragem Eu não entendo nada do que se passa O melhor mesmo é continuar a caminhar como se nada tivesse acontecido O poder da cidade está no poder das pessoas e não no poder da pessoa poderosa que julga pensar pela cidade A cidade existe e ainda pode existir se for bem pensada por quem nela habita O espaço urbano da cidade pensa moderno pensa matar o passado pensa matar definitivamente o coração da cidade e a cidade morde A cidade que não deseja escurecer morde e ataca Quer manter-se na essência daquilo que ainda é A cidade está viva tão viva e tão imensa tão rápida A cidade já se esqueceu de quem verdadeiramente é O subúrbio é a cidade o gueto é a cidade a miséria e a degradação são cidade as sombras mais do que a luz são cidade a corrupção e a injustiça são cidade o desemprego e a poluição são cidade O povo em constante conflito é a cidade Esta voz tem rosto de mulher jovem de nariz escultórico cabelo ruivo ondulado com olhos castanhos profundos e pele clara e bem tratada Esta voz é profunda intensa rica e melódica A cidade não para A cidade é eterna As escolas dos bairros degradados explodem e a cidade explode num caos urbano sem precedentes A miséria explode os prédios explodem e a cidade implode A cidade vale mais destruída do que inteira A cidade urbana e suburbana é uma doença moderna sem fim uma doença louca cíclica e caótica Onde estão as crianças da cidade Onde estão todas as crianças e jovens da cidade Onde estão os idosos os doentes e os loucos da cidade Onde estão todos Seguem-me encarcerados nas viaturas imobilizadas estão de olhos colados aos vidros Olhos tristes destroçados e cansados Onde para a cidade verde e azul A cidade foi pensada para dar lucro para promover o lucro para nunca parar de crescer de desumanizar e de arruinar Sinto esta doença da cidade que me afeta e corrói A cidade irá explodir irá morrer ou irá sobreviver A cidade é tudo aquilo que não devia ser mas também é aquilo que ainda pode ser A cidade nasceu cresceu viveu mas não sabe como sobreviver A cidade extraordinária é contraditória e sofre A cidade encontra-se na cabeça do todos os habitantes do globo Eu ainda não fui habitante da cidade mas sou habitante da cidade porque sou habitante do mundo As cidades das torres que vibram e clamam poder e virilidade Os habitantes movimentam-se cavalgam nos seus cavalos de metal como em todos os outros dias Viva a cidade moderna futurista poderosa global vaidosa ambiciosa engenhosa empreendedora humana Viva a cidade humana construída por seres humanos audaciosos inteligentes engenhosos experientes corajosos e capazes como nenhum outro ser humano Viva a cidade dos prodigiosamente capazes Viva a cidade que alberga e que aparentemente protege os que nela habitam Viva a cidade que depois de ferida debilitada frustrada atacada e descrente cresce com formas impossíveis Viva a cidade imensa global Viva a cidade de todas as liberdades Viva a cidade paradoxal

O melhor mesmo é continuar a caminhar como se nada tivesse acontecido



FIM

A cidade é antiga




1 de Abril 2012



A cidade é antiga


A cidade é antiga A história da cidade tem séculos cada um com milhares de histórias que a transformaram Nada na cidade é simples ou harmonioso Tudo se transformou para que a cidade crescesse desmesurada crescesse do mar e do rio que assim a moldaram gigantesca e cosmopolita A cidade olhou para a frente e nunca mais parou de crescer Recebeu milhares recebeu milhões ao longo destes séculos Transformou-se foi parcialmente destruída cresceu industrial e comercialmente cresceu com os seus sistemas de navegação com os sistemas rodoviários ferroviários, com ideias tensões surpresas dinamismo rotina utopia revoluções liberdade e luz A imprensa da cidade é enérgica sempre foi mais enérgica do que os seus silêncios principalmente na primeira metade do século dezanove A cidade cresceu com os ardinas que vendiam jornais carregados com histórias de sexo crime assassinatos e todos os demais vícios A imprensa vibrava com as histórias mais violentas da cidade e a cidade vibrava Poligamias incêndios acidentes e incidentes e a avenida central sempre vigilante como espinha dorsal da imensa urbe A cidade cresce desordenada caótica miserável grotesca porque as pessoas que a habitavam assim a fizeram crescer Gigantescos contrastes entre ricos e pobres entre quem é culto e quem não possuí formação entre etnias entre todas as caóticas transmutações que o tempo lhe acicatou O coração da cidade cresceu nesta variedade e diversidade e assim se moldou A cidade grotesca que ama o grotesco que ainda hoje ama tudo aquilo que é grotesco Os escritores da cidade faziam crescer a sua reputação monstruosa nos primeiros jornais obedecendo aos gostos da época obedecendo ao prazer de publicitar as diferenças as dores as fantasias que vendiam bem melhor do que tudo aquilo que é normal e fútil e desinteressante E não paravam os novos habitantes de chegar à cidade que deles se passava a alimentar para lhes poder dar sustento esperança e alguma dignidade Todas estas imagens me são transmitidas por uma voz de mulher africana com rosto redondo olhos negros e cabelo curto A maior das misérias estava para chegar A cidade recebia caixões abertos em náuticos paquetes que eram o produto acabado da desumana travessia que os derrotava O sonho e a esperança eram o único alimento a cobrir-lhes o pensamento



 A miséria é dona da cidade e cresce por toda a parte fazendo crescer a cidade e todos os seus lugares O coração da cidade nasceu racista e cresceu racista moldando-lhe parte dos genes que a caracterizam As várias linguagens da cidade desagregaram-na descaracterizaram-na e dividiram-na Crime sujidade poluição medo e miséria a par de uma falta de esperança do tamanho do mundo caracterizaram os sonhos da cidade no início da primeira metade do século dezanove Avanço por entre habitantes congelados que não são os da minha cidade Avanço pelos habitantes congelados dessa cidade antiga que me surge como um pesadelo um violento inferno a céu aberto com milhares de habitantes perdidos e a ordem violenta e sanguinária dos seus gangues que fazem da cidade um permanente cenário de guerrilha urbana A cidade museu transformou os habitantes mas não me transformou Avanço na tentativa de encontrar explicação para tudo isto que me acontece pois nada faz sentido Esta é a voz de um homem calvo com barba curta e cuidada de olhos castanho mel Quem sou e o que significo para a cidade Falo sobre a cidade como se a tivesse escrito apenas ontem e a revolução citadina está para breve


O poeta é o reunificador O poeta é o único capaz de sentir a cidade O poeta é o único capaz de dar a conhecer o coração da cidade Esta é a voz com rosto de Walt Whitman que viajou do passado e me fala da sua cidade calcorreando-a e inventariando-a como mais ninguém o pode fazer Fala-me de todas as pessoas e dos sonhos que lhes foram apagados O poeta da cidade conhece a sua cidade e viu luz no alienado e caótico caldo citadino A minha cidade não é a de Whitman mas todas as cidades são as de Whitman Foi ele que transformou os habitantes petrificados da minha cidade nos habitantes petrificados da sua Nova Iorque A voz do poeta é única como a cultura do desejo é única como toda a fantasia e curiosidade e a selvagem e pura busca da verdade são únicas A fantasia desse anónimo amante da cidade é a de que através do seu amor se pode libertar A cidade sexual a cidade do prazer do prazer libertador em contraponto com o poder castrador do cimento do tijolo da argamassa do edifício da estrada da avenida Quem vê assim amantes no mais improvável dos elementos da cidade é o maior dos amantes da cidade Quem ama a cidade miserável deprimente e injusta é um amante da esperança e do coração dos homens Esta é a cidade dos desempregados dos esfomeados dos desfavorecidos dos injustiçados dos doentes Esta é a cidade que cresce cinzenta e desgovernada A população vive empacotada nos mais repugnantes e claustrofóbicos espaços e sobrevive na pior das condições A população não respira só respira o ar asfixiante de todas as maleitas da cidade Esta é a cidade que cresce anónima desigual e sem tempo para desperdiçar A cidade tem de renascer tem de se reinventar tem de deixar de sangrar internamente para que os seus habitantes deixem de sangrar internamente E a cidade reinventa-se em quadros de verde e de esperança através do maior de todos os parques citadinos A cidade bebe essa esperança e tenta calar os ruídos nesta sua reinvenção Mas este parque não é sinal de libertação o parque foi pensado para quem se sabe comportar A cidade foi engolida pela história e a história da cidade transformou-se por todos aqueles que a reinventaram A cidade não para a cidade nunca para como a noite termina para o dia nascer As pessoas petrificadas da minha cidade regressaram Walt Whitman diz-me que a linguagem dos antigos habitantes da cidade é a mesma dos de agora A cidade escraviza e vive desse próspero raciocínio de que se alimenta A cidade enlouqueceu O campo que alimenta a cidade enlouqueceu o mundo enlouqueceu e o poeta serviu a cidade e o campo nessa loucura A loucura fez crescer a cidade louca que louca cresceu e enegreceu O mundo a cidade e o campo enlouqueceram e os loucos queimam-na destroem-na Edifícios pilhados esperanças destroçadas vidas desfeitas a vingarem-se da cidade e das suas entranhas As multidões atacam os empresários atacam os donos da imprensa atacam os banqueiros e os corretores atacam todos os que possuem cores e visões diferentes da multidão Os que atacam estão desesperados e com ódio no olhar atacam o coração da cidade que agora está queimada negra e anárquica O réptil venenoso que habita na cabeça de cada habitante da cidade alimentou-se do veneno da cidade O vermelho toma conta do coração negro da cidade A cidade está em guerra a cidade é o próprio inferno que aqui se edificou Pais e filhos e primos e irmãos lutam uns contra outros nas praças nas avenidas nas ruas e nas esquinas esventradas da cidade do poeta que não sabe o que dizer O poeta não consegue explicar a cidade doente que não é justa porque nunca o foi e nunca o será O verdadeiro poder da cidade está na sua capacidade de sobrevivência Como sobrevive a cidade a este inferno que arde no centro do seu coração A cidade pobre e rica é vergonhosa ou possuiu carácter A cidade pobre e rica é violenta ou apaziguadora A cidade não fala pois não precisa Todos os habitantes falam pela cidade O poeta duvida da cidade mais uma vez São negras negras negras as nuvens que pintam como serpentes o céu da cidade A cidade sem futuro tem passado e este presente Quem são os que mandam na cidade nesta cidade de ricos e de pobres nesta cidade das luzes e das sombras cidade do sol e da escuridão Esta é a cidade dos desesperos de todas as misérias da mais profunda e gritante de todas as misérias A cidade renascerá como nunca A cidade reinventa-se máquina reinventa-se cidade futurista e fumegante A cidade reinventa-se gananciosa diabólica corrupta cruel desgovernada O monstro sem ética nem moral renasce cinzento poderoso e explosivo A cidade cresce imensa para lá das margens dos rios cresce para norte para este para sul e para oeste Para todo o lado a cidade cresce e cresce para lugares onde ainda não era a cidade Esta cidade não é amada e não ama O antigo habitante da cidade não a conhece nem a cidade o reconhece



A cidade cresceu para lá do rio e foi ligada à sua outra parte em crescimento A cidade da ponte que nasce gigantesca e maior do que todas as outras pontes que após esta nascerão A ponte da cidade nasceu corrupta como as relações entre os poderosos da cidade A cidade corrupta fraudulenta desesperada vilipendiada pobre sempre pobre doente e escura A cidade fraqueja é suja tão suja tão desgraçadamente suja que não sei como consigo caminhar A ponte enche o céu por cima de quem habita a cidade A ponte pertence à cidade e a cidade à ponte A cidade cosmopolita dança finalmente no parque verde fora dos esgotos lamacentos dos guetos escuros e mal cheirosos A cidade dança com medo vive no medo vive nervosa vive sombria e mata a esperança Esta é a voz de um homem idoso com cabelo branco curto bigode aristocrático olhos vivos inteligentes nariz imenso redondo e vermelho Como os escuto Como ouço não sossego Escuto sempre e sempre e sempre e já não consigo imaginar esta cidade sem vozes As vozes falam-me tanto sobre a cidade que só podem pertencer à cidade e algumas dessas vozes são só minhas A história da cidade passa a ser a história da ponte e do rio que dividia as duas partes da cidade Esse é um rio que já não divide A cidade embelezou-se pois a ponte que une a cidade é bela e forte e cresceu vigorosa através do trabalho de quem a montou A cidade e a ponte são uma só esperança Ricos e poderosos fazem crescer este paraíso urbano e fazem crescer as diferenças entre os que têm e os que não têm Todos parados Os habitantes da cidade permanecem petrificados Acredito que isto é uma manobra programada pela cidade para me enlouquecer definitivamente Permaneço minimamente saudável pois escuto as palavras que os meus rostos me cantam Esta voz tem rosto de criança com cabelos encaracolados revoltos e sujos com olhos da cor da esperança O otimismo do poeta não contagiou a cidade A cidade não se permite a otimismos O poeta outro poeta quase deixou que a cidade o derrotasse E o flash das máquinas mostrou toda a escuridão A cidade escondida dos fantasmas escondidos dos passageiros do inferno A cidade dos miseráveis da mais horrível e miserável ruína da mais horrível e miserável pobreza A cidade que é dos homens e não é dos homens a cidade dos meninos abandonados a cidade dos que sendo habitantes da cidade são habitantes dos vários infernos onde apodrece a cidade A cidade das doenças amigas pois matam e trazem finalmente o paraíso aos que falecem A cidade doente a cidade que despoleta as doenças com infinita paciência enchendo caixões enchendo cemitérios E o livro do poeta ajuda a cidade que não ajudou o poeta porque a cidade é tudo menos justa A cidade é forma é arco é edifício é estátua é sombra é sombra projetada em outras sombras segundo as palavras do primeiro poeta que faleceu Em tão pouco tempo o poeta viu a cidade florescer com esperança com os olhos que só um poeta pode ter A cidade ecológica cultural e ambiciosa que se reinventa Glória para a cidade e glória ao poder infinito dos que nela mandam A cidade esperança nasce com o fim de uma era e o início de outra A cidade cresce gigante muito para além da imaginação dos que a habitam A cidade física cresce como cresce a onda dos que a desejam alcançar Essa onda é a primeira de muitas marés que nunca terminarão A cidade misteriosa a cidade densa a cidade dos que a ela chegam A cidade que nunca é pois está em permanente transformação O que é a cidade e de quem é a cidade Os poetas compreendem a mudança da cidade grande tão grande Tantas foram as lágrimas vertidas por quem chegou à cidade por quem chegou à cidade e sobreviveu A cidade é cidade criminosa cidade doente A cidade louca desesperada traumatizada A cidade dos esquecidos e dos que jamais regressarão Todos os países pertencem à cidade que se transforma que cresce que os recebe como se fosse o céu A cidade recebe-os como se não existisse na terra mas sim no céu A cidade das estruturas verticais que se erguem cada vez mais altas Erguem-se cada vez mais imponentes Erguem-se e fazem da cidade a maior de todas as estruturas A cidade gigantesca colossal vasta tão vasta que as energias se esgotam para tentar encontrar palavras adequadas que a descrevam A cidade templo esta cidade templo continua a perseguir-me como uma sombra louca e fantasmagórica Nada se mexe nada se move nada se movimenta ou disso dá sinal A cidade metrópole inaudita que não só se transforma como se deixa transformar A cidade dos milhões que a invadiram e que se tornaram tão frenéticos como a cidade Os habitantes são regulados pelos ritmos frenéticos da cidade moderna e cosmopolita que os organiza e automatiza e que assusta e que afinal não é o céu que aguardavam As ruas da cidade são bazares são mercados colossais são virtudes aceleradas sem descanso frenéticas a sugar os sonhos dos novos habitantes A cidade disseca as esperanças e as energias e coloca todos contra todos velhos contra velhos e acima de tudo velhos contra novos corações contra corações imagens e rostos de ontem contra imagens e rostos de agora As ruas da cidade estão furiosas apinhadas e confusas Aqui se nasce se vive se sobrevive A cidade caprichosa que engole os habitantes transporta-os e castiga-os Os que nela vivem conhecem finalmente a verdadeira dimensão desta entidade A cidade das estações por onde tantos passam por onde são destilados onde se iniciam e terminam as viagens de todos os destinos De nada interessa tanta luz tanta ponte tantos caminhos tão rápidas ligações O problema da cidade vive com a cidade e ela galvaniza-se nestes ciclos desmesurados de contrastes A cidade sempre será uma cidade de contrastes de corações partidos e afastados A cidade escraviza a cidade tem escravos que não podem falar nos seus postos de trabalho que não se podem atrasar que não podem parar de produzir Esta é uma voz com rosto de mulher de tez pálida penteado esculpido em escultóricas tranças apanhadas atrás da cabeça numa caprichosa e perfeita banana de cabelo O olhar é cansado exausto negro esperançoso e inquieto A cidade exausta a cidade que desespera todos os que nela vivem e trabalham quem nela respira quem nela ainda acredita A cidade mata de cansaço quem trabalha mata de dor transforma os sonhos no maior dos pesadelos A cidade é um mar de chamas é um inferno que nenhum bombeiro consegue debelar A cidade dos que voam para escapar à morte e que a abraçam A cidade das trevas e das tragédias sem igual A cidade surda pesada infinita A cidade petrificou todos os que nela habitam sem pestanejar e mantém-me acordado para que escute as minhas vozes enquanto caminho sem rumo no meio da quietude e do silêncio Escuto as memórias dos mortos de todos estes mortos que a cidade fez desaparecer Choro pelas vidas de todos os que a cidade fez desaparecer Choro pelos escravos da cidade pelos escravos de todas as cidades choro pelos que padecem nos horrores que crescem nos corações da cidade


A cidade parou de dançar




31 de Março 2012



A cidade parou de dançar


A cidade parou de dançar todos pararam de dançar a coreografia da cidade O peso é tremendo o vazio silencioso sufoca pressiona Não tenho forças para correr mas é isso que me apetece fazer correr para bem longe deste museu artificial onde me movimento Só isso me ocupa o espírito nada mais A cidade inventou esta inércia organizou este pesadelo para meu tormento Avanço na direção dos prédios que se encontram para lá do parque central da avenida Sigo até essas torres circulares que ocupam metade da grande rotunda Talvez consiga encontrar o Arsénio mesmo parado mesmo estátua As árvores na avenida parecem surpreendidas por não as cumprimentar como é meu costume Hoje a cidade vinga-se da minha amargura do meu colapso Resolveu empurrar-me definitivamente para o lado mais escuro do abismo Mas eu quero continuar a conseguir relacionar-me com os vivos

sexta-feira, 30 de março de 2012

Quando a cidade escurecer




30 de Março 2012



Quando a cidade escurecer


Quando a cidade escurecer não estarei aqui Porque será que tudo está petrificado e eu sozinho no meio de toda esta gente no meio da cidade estátua no meio dos que ficaram dentro das viaturas É uma solidão sem paralelo e a sensação é insustentável As pessoas anónimas que fazem parte da vida da cidade assustam nesta inércia forçada O peito ficou obstruído Um forte aperto no peito impede o ar de circular Grito e não sai nenhum som nenhum sinal Perdi de vez a ligação com a cidade que também não fala e não se mexe Tentou acabar com a minha irritação e com a minha mágoa assustando-me Estou sozinho no meu destes milhões numa solidão claustrofóbica doentia e sufocante Uma solidão igual à que sofre a cidade Deixou de fazer sentido continuar o passeio Tenho como companhia esta voz com rosto de menino numa cara suja de olhos brilhantes vivos inteligentes com um sorriso inocente doce e cativante É ele que me descreve as avenidas paradas completamente preenchidas por centenas de milhares de viaturas imobilizadas onde parou tudo o que vive O vento está petrificado como a brisa e todos os ruídos Só eu permaneço igual na cidade estátua Volto a ligar à Rute uma última vez volto a ligar ao Arnaldo e ao Carlos Alberto e reponde-me o silêncio Devem estar tão quietos como todos os que se encontram aqui Vivos mas estáticos E será que observam será que escutam este silêncio será que sentem este estranho odor a quietude a marasmo e a inércia forçada Um silêncio gigantesco tomou conta da paisagem e enche-me de vontade de gritar Mas que grande merda esta Quem se lembrou de virar a cidade contra mim Foste tu ó cidade maldita que não gostaste do que disse de ti É assim que procedes com quem te critica Vai para o raio que te parta espécie de inferno habitado Tu não me derrotarás Estou meio louco Já estava meio louco A loucura espreitava de qualquer forma por detrás de cada esquina por onde eu passava por isso podes ir para o raio que te parta ò cidade merdosa Cidade megalómana e exacerbada com requintes de imperatriz Quem serias tu se nós homens não te criássemos Quem serias tu sem os homens que te reconstroem sem os que fazem de ti tudo aquilo que tu és e que não és Vingas-te em mim apenas em mim Porquê Continuas muda silenciosa apesar de gritares de descontentamento através desta fossilização generalizada que acabaste de produzir Deixa-me em paz cidade funesta deixa-me em paz com a minha solidão Volta àquilo que é normal e faz com que todos regressem aos movimentos e vivam e se deixem angustiar nas filas intermináveis e no caos das tuas entranhas Volta àquilo que é normal e deixa que todos regressem às rotinas diárias cinzentas com que te refrescas Deixa-os viver ou morrer ou lá o que fazem dia após dia após dia É uma bela porcaria este sistema que me faz sofrer Oferece de novo movimento a quem o retiraste Volta a girar o mecanismo volta a dar corda ao sistema para que possas voltar a consumir a vida de todos num instante Fomos nós homens que te criámos como uma prisão e tu não aprecias aquilo em que te transformaste Serás ainda pior com o passar dos anos Ficarás mais caótica mais inútil inerte suja escura e dantesca Serás um gigantesco e inútil animal anónimo Vai mas é para o raio que te parta



quinta-feira, 29 de março de 2012

Abri a Porta


23 de Março 2012



Abri a porta


Abri a porta Na avenida o caos habitual Os animais metálicos tentam chegar aos destinos mas não avançam mais que uma mera dezena de metros por minuto O calor associa-se ao cheiro urbano do tráfego diário Preciso do café da manhã, de passar os olhos por um pedaço de notícia, mas para quê se elas se repetem sempre tão iguais As pessoas nos passeios são um formigueiro humano que avança como os animais metálicos Em rituais ensaiados, sobem pela direita, descem pela esquerda numa interiorizada cópia do sistema rodoviário, derretem-se no asfalto, derretem-se na calçada A ordem de todas as coisas, a ordem desordenada da lei do mais forte a ordem do distraído que segue alheio à rotina, a ordem dos animais semeados perdidos na beira dos passeios, a ordem dos semáforos dos sinais visuais e sonoros das sirenes dos que querem orientar a ordem dos animais metálicos depositados aleatoriamente nos passeios entre espaços impossíveis a ordem da ousada condutora apressada de filhos carregados de filhos empurrados de filhos carregados com quilos de mochilas às costas sabedoria ocidental a ordem dos funcionários camarários que limpam que desesperam quem deseja avançar e segue atrás do gigante triturador a ordem dos relógios a ordem da discussão familiar no banco da frente a ordem da fome que se mata com a palhinha introduzida no pacote de leite acastanhado adocicado amigo no banco de trás a ordem dos pássaros metálicos gigantes que guincham os últimos segredos nos últimos segundos da viagem ao passar mesmo por cima da avenida Não sei como aqui se dorme se acorda se descansa A ordem dos mendigos e dos loucos que como mendigos pedem a quem passa dois ou três segundos de atenção a ordem desordenada dos esperançosos estudantes com brilho nos rostos que suspiram horas perdidas nas desalinhadas filas dos transportes A ordem das estações debaixo do solo a mesma estação que os espera no final da viagem a ordem de tudo aquilo que se constrói cada dia desde que se acorda desde que o vento bate nas cortinas da janela mal fechada dos elevadores que não trabalham a ordem gasta das fachadas dos velhos edifícios da avenida dos cafés que lhe conhecem os vícios de todos os viciados das árvores hipóteses verde esperança que respira citadina citadinas como todas estas que se perfilam ao subir a calçada apinhada A Rute está atrasada como sempre mais uma vez Tem sido assim nestes últimos dias Já cansa tanto atraso Obedece a outras ordens, os seus lugares já são outros e não responde às mensagens A Rute preocupa-me pois já não é capaz de falar sobre as coisas Agora só escuta É mau quando só escutamos A Rute não devia pensar tanto na vida O pessoal dos correios esteve aqui ontem a fazer uma mini manifestação de protesto contra o encerramento de mais uma dependência Andam a fechar tudo, a acabar com tudo A Rute estava habituada a fazer este trajecto e esta vida há mais de trinta e oito anos e agora querem enviar os trabalhadores para muito longe daqui, para outras estações e dependências muito afastadas Aos mais antigos convidaram acenaram com a reforma antecipada, ou então que desaparecessem A Rute nunca mais chega e não atende o telemóvel O Carlos Alberto tinha-a convidado para o cinema mas ela nem assim se mexeu A boca não deixa, os olhos não deixam mas, acima de tudo, a idade não deixa Vou sentar-me ali junto ao jardim Os bancos estão gastos como o tempo, como eu, como os cães vadios que parece que nascem por aqui Vou ligar ao Arnaldo, pode ser que já tenha acordado Nada Que bem que me sabe este café Estamos todos cada vez mais sós, como a Rute, como o Arnaldo, como o Carlos Alberto e como eu Caramba Mas que raio de conversa de velhos Tudo parece velho, gasto, louco, cansado Os putos correm com as mochilas às costas Faltaram à escola Devem gostar do que por lá ensinam Preferem correr em grupos, vadiar por aqui Que inveja lhes tenho, como gostava de poder ser como eles, pecar como eles Maldição do tabaco, malabaristas do eu contra o mundo que não os conhece Não sabem como era antigamente, não lhes interessa o ontem, nem o amanhã e o hoje, para alguns, veste-se de tristeza, de fome e de porrada Ordens dadas umas atrás de outras que devem cumprir Está bem está Fartinhos dessa merda toda, das conversas desses chatos que só moem a cabeça A utilidade de um beijo é que devia ser ensinada, a utilidade de uma falta bem dada, de andar de metro à deriva das estações, de fugir A Rute não está bem Vai ter de ser ela a ligar Já não me apetece este banco Vou continuar a caminhar pela avenida mas aborrece-me o não conseguir parar de pensar, parece que todas as minhas ideias e pensamentos têm uma voz e um rosto Todas falam e é um cansaço terrível logo ao fim da manhã Vejo-as com caras de velhas que não se calam, vozes com caras de funcionários pálidos de óculos e de pele baça sentados em cadeirões e que não param de teclar, a mão direita agarra e brinca com um telemóvel esperando que toque, esperando não sei muito bem o quê Vejo vozes com caras, mais de mil e um rostos, rostos de putos, de jovens, de operários fabris, de pastores, rostos de políticos, de escritores, de psiquiatras e de empregados de café, vejo uma voz com a cara de uma pequena criança que ainda mal consegue andar, em todas as minhas vozes eu vejo um rosto É uma canseira Por isso olho para os carros que não avançam na avenida, olho para as montras gastas, para todo este povo que se movimenta O que será que pensam, porque será que pensam, ou não pensam, o que os preocupa, porque se preocupam Precisava de descansar mas não consigo resistir ao apelo das escadas do prédio, descer e vir para a avenida passear Outros como eu também andam por aí meio perdidos, sentam-se, distraem-se com conversas fúteis sobre coisas inúteis, sobre cada coisa mais inútil que chega a meter dó Detesto quando as vozes me dizem estas coisas Mais valia dar uso à receita que me passou o colega do meu filho Tanta gente fala e pensa saber sobre tanta coisa, pensa saber sobre tudo e sobre mais alguma coisa, até dói E a Rute que o diga Não me responde Continua com o telemóvel desligado Os autocarros seguem tão apinhados que é difícil perceber como se movimentam Avançam alguns metros e param junto aos outros metálicos animais que estão anichados a aguardar a ditadura dos semáforos A cidade caótica engole-os, esvaziou-lhes as almas Vou ligar ao Arnaldo mais uma vez São quase dez e meia da manhã O que terá andado ontem a fazer para ainda estar a dormir Nada Desisto Quero lá saber Eles depois que me liguem O avião passou tão rente ao prédio que o fez tremer Vou descer a avenida até ao teatro São pouco mais de quatro quilómetros Gosto de passar junto ao relvado que se estende à frente do edifício Os estudantes universitários gostam de se estender ali como se estivessem na praia e eu gosto de os ver assim Depois regresso ou então continuo o percurso até ao estádio universitário Vou recordar os meus tempos de corredor Divertia-me a correr como criança, sujava os pés e as pernas nos corta-matos e alcançava sempre a meta na primeira metade da tabela Nunca desisti uma única prova, conclui-as todas Os carros continuam parados Que loucura Ninguém se mexe no trânsito caótico O que será que os impede de largarem a porcaria dos automóveis e caminharem ao longo da avenida Trago aqui na carteira a receita por aviar, vou deixar de ser casmurro e vou arranjar os comprimidos O meu Arsénio está cansado de me avisar e ficou ofendido com a minha teimosia Deixá-lo Lembro-lhe que tem a quem sair Detesto quando as vozes ditadoras me dizem estas coisas Pararam de falar comigo por instantes Devo estar a melhorar Era bom se assim acontecesse Na brincadeira, o rapaz até me disse para eu começar a escrever, para apontar num caderno tudo aquilo que as vozes me dizem A minha mão não iria conseguir parar tantas são as palavras abertas no interior da cabeça E depois, onde ficava tempo para os passeios, para as conversas com a Rute, com o Carlos Alberto e com o Arnaldo Eu não quero saber o que me dizem as palavras, a maior parte do tempo são disparates como este agora Disparate, um disparate pegado Querem lá ver que tinha de andar sempre carregado com um caderno e caneta para apontar todos os pensamentos Tenho lá cabeça para isso e não quero saber do que as vozes me dizem, estas vozes com rosto que nunca me abandonaram desde que me conheço Uma coisa prometo Vou comprar um caderno e uma caneta, não são pesados e passam-me a fazer companhia Pode ser que depois, com o medo e a vergonha, as chatas das palavras definhem Não ia precisar de comprimidos Talvez a ideia do Arsénio tenha pernas para andar, quem sabe Esta voz tem cara de senhor forte, muito forte, cabelo curto, grisalho, bigode, pescoço curto e vigoroso, olhos castanhos, olhar sério e ausente O que é que isto interessa Filas intermináveis de pessoas nas paragens dos autocarros Que dia A esta hora, noutras ocasiões, não é costume estar tanta gente à espera A cidade consome e mal trata e as faces de todos os que esperam estão verdes e amareladas, derrotadas por um cansaço eterno que as faz desaparecer Esta é uma voz com rosto de idosa, meio andrógina, de cabelo curto, óculos, ar adoentado com minúsculos olhos escuros Consigo ver o que tem vestido, um casaco de tom acastanhado, calças mais escuras que o casaco, vincadas, sapatos masculinos com pequeno salto e um lenço largado à volta do pescoço de cor beije Mais um avião enfurecido desce farto da viagem, ansioso por aterrar Nesta zona da avenida as esplanadas enchem-se de idosos que engolem cafés, lêem jornais e olham vazios para um ponto distante





24 de Março 2012



Escrever qualquer coisa todos os dias


Escrever qualquer coisa todos os dias A cidade continua a engolir os habitantes Como formigas, entram nas entranhas da terra pelas estações do metropolitano, entram nas carruagens apinhadas, aguardam o destino, aguardam sentados, aguardam de pé, apertados, ensanduichados uns contra os outros, olhares distantes, ausentes, o mendigo mendiga, a criança adormece ao colo da mãe, o ruído do gigante vermelho que transporta as formigas nos túneis, que os envelhece, que não tem coração nem intestinos, nem entranhas, só corpo e função e velocidade A cidade vive de quem nela mora, de quem a visita, de quem a procura, de quem não a suporta, de quem a deseja mais do que a vida, de quem a desconhece mesmo que nas avenidas e praças se espreguice há tantos anos que já lhes perdeu a conta, e são tantas as cidades dentro da cidade






25 de Março 2012



A cidade doente


A cidade doente, de habitantes doentes vencidos pela rotina, pela ilusão de bem-estar, pelas oportunidades de sucesso e pelo estilo de vida que a cidade lhes vai acenando A cidade que já não deslumbra Desespero como os automobilistas desesperam no trânsito caótico e eu desespero porque não desistem Deviam saltar das máquinas que os consomem, abandoná-las, seguir novos caminhos, outras vontades e destinos Desespero pelas horas e dias inúteis em que se consomem estas vidas numa alienada realidade que corrói a esperança e desesperam Envelheci A Rute, o Arnaldo e o Carlos Alberto envelheceram e a cidade sempre presente, animal feroz que prende os movimentos, que agrilhoa os que tentam avançar mas que, como eu, lhe escutam as vozes





26 de Março 2012



Vingo-me na cidade


Vingo-me na cidade opressora com palavras Desumanização de betão e asfalto, de ruído e poluição, do anonimato que recheia a urbe onde não há silêncios A cidade formigueiro, ávida, cruel, indisciplinada, escura e cinzenta onde até o céu se deixa contaminar e altera o tamanho dos sonhos Sigo na avenida pelo passeio cheio de quem anda perdido, despido, sem planos e de rostos fechados A cidade atrofia e as quedas são em maior número que os voos Os prédios crescem, nascem, estão cada vez mais mortos, sujos velhos e gastos Orientam a cidade como um polvo colossal que se expande e se dilata totalmente desorganizado, descoordenado, desorientado, que se expande como um colossal bloco demente, uma entidade viva deslizante que aniquila toda a natureza envolvente Não se vive apenas se sobrevive Descarrego a fúria na cidade porque ela penaliza e não simpatiza com quem a habita A cidade não aceita o erro, descarna a essência de quem se move nos seus passeios, nas ruas e vielas, nas pracetas, largos e nas avenidas Se escrevesse ficava vazio, cansava-me, penalizava-me e assim é bem melhor pois avanço com o ruído das vozes e a companhia dos seus rostos enervantes Quem me fala é uma mulher com cerca de quarenta e seis anos de idade, pele manchada e testa enrugada, instável, neurótica com um olhar fatigado de cabelo desalinhado e que veste roupa que já não pertence a estes dias





27 de Março 2012



Os dias e as noites


Os dias e as noites descrevem ruídos que sobem de tom e que descrevem conversas com nuvens negras e dores que descrevem indecisões e inícios atribulados e que vontade tenho de acabar com todos os edifícios que a cidade viu nascer todas as pontes todos os lugares acabar com tudo de uma vez por todas Acabar com a cidade cansada com todos os castelos e palácios e silêncios e muralhas A cidade cansa e as palavras continuam a aparecer e eu vejo O rosto de quem me fala com esta voz agressiva tem lábios finos e olhos de quem suspeita Uma voz que ecoa e ressoa e enerva Regressam as palavras do Arsénio a insistir a remorder a avisar Vai aviar o medicamento pai deixa de ser casmurro e vai aviar o medicamento A farmácia brilha como uma chama incandescente que saltar do seu interior como um relâmpago e destrói tudo em redor Acabou o passeio e nasceu o asfalto Até ao lado de lá da avenida estende-se a passadeira a desenhar um caminho Entre as duas vias o parque estende-se longitudinalmente acompanhando a avenida Páro junto ao pequeno lago que faz parte deste rectângulo de verde Vou desligar o botão que fará desaparecer a cidade que a fará desaparecer para todo o sempre como se nunca tivesse existido Manifesto a minha preocupação por estes pensamentos Esta voz nervosa tem rosto de senhora com sobrancelhas arranjadas rosto fechado olhar inquieto Uma voz que soa sofrida com a cidade As nuvens tapam o sol mas o calor mantém-se Os automóveis continuam a apinhar as ruas e as avenidas sem avançar num cansaço permanente que gasta as vidas no tráfego eterno Tráfego diário caótico desesperante Quero ver o mar e neste pequeno lago só vejo a água esverdeada com pequenos toques rubros aqui e acolá Salvem estes peixes Tirem-nos daqui e tirem-nos a todos da cidade Tirem toda a gente da cidade e tirem de uma vez por todas a cidade daqui Tirem-me este cenário da frente e tirem-me as vozes de dentro de mim As pessoas seguem cinzentas e automáticas pelo parque Avançam na avenida pelos passeios e acessos a viadutos e a pequenos túneis com escadas por onde descem e sobem mas não avançam seguras Escuto e não queria escutar Estou quase a chegar onde o sinal vermelho manda parar e onde mais nada se move Os peões atravessam a avenida passando por cima dos automóveis que pararam e tapam a passadeira Saltam por cima das viaturas que preenchem a cidade de uma ponta à outra Saltam os condutores e passageiros de dentro das viaturas e começam a discutir uns com os outros Regressam ao banco dos seus automóveis iguais pois ninguém muda Somos o que somos e a cidade acaba por aniquilar o que de bom ainda existia em cada um de nós É um tormento Avançamos pela cidade num passo cada vez mais lento e demorado Mesmo assim somos mais rápidos que o trânsito caótico apático e claustrofóbico É uma loucura São agora mais de vinte os rostos destas vozes Uma é melodiosa outra estridente Uma enervante outra irritante Uma tem rosto de voz delicada e destaca-se das demais Mas que interesse poderá tudo isto ter para alguém Que interesse Nenhum absolutamente nenhum Pode não ser o real pode ser apenas uma mera ideia mas eu ficaria mais aliviado se nenhuma destas vozes me enervasse e se alguma delas fosse capaz de matar esta batalha de linguagens que nasceu dentro de mim Acabem com isso Caluda Raios vos partam Escrever isto para quê para ordenar o que não se ordena o que não tem ordem Escrever isto para tornar límpido o que mata amputa e destrói Como esta entidade viva chamada cidade que mata amputa e destrói Vou sair do parque vou continuar Na avenida nada mudou Tudo está parado imóvel ruidoso Passo para o lado de lá desta imobilidade e deste lado do passeio olho para trás para aquilo que percorri Tudo parado Milhares de viaturas de onde saem milhares de pessoas que agora olham por cima dos tectos tentando entender a razão para esta inércia Vozes estalam cada vez mais violentas no centro da cidade Avanço na direcção do teatro mecanicamente Não sei porque me preocupo com a cidade É uma vontade que me morde e eu obedeço-lhe Com dificuldade vou calando este ruído intenso que me massacra Esta voz tem rosto de mulher jovem e segura que desenvolve e descreve o seu raciocínio num tom nasalado As maças do rosto são marcadas e o cabelo cuidado As suas palavras irritam mais do que magoam Ao longe vejo uma farmácia vejo duas vejo três e não cedo Não ainda Sai de casa para me abandonar no ambiente da cidade até não poder mais A cidade que já não tem nada para me oferecer a não ser a sua própria existência É isso que me permite existir e que permite que o desabafo exista e os silêncios não Está mais perto a visita ao farmacêutico e aqui estão os jovens Felizmente que alguns parecem não fazer parte deste universo Abandonaram as salas de aula abandonaram as paredes abandonaram os corredores e são verdes como a relva onde repousam Quero ser assim também ter a idade que é a deles que já foi a minha e que a cidade engoliu Esta é a voz de um homem africano de olhos negros e pequenos com sobrancelhas carregadas barba mal aparada cabelo curto e testa vincada com fortes rugas de expressão É arrogante e fala como se entendesse tudo sobre todos os assuntos e sobre todas as matérias Não erra tudo sabe e tudo compreende Farto estou verdadeiramente farto destas vozes e destes rostos que me falam Vou ser um pouco desta relva para poder deixar de dizer mal da cidade mas não consigo Estou zangado com ela e quero continuar a desabafar desta maneira sobre a cidade Repetidamente desabafar Não gosto da cidade Ela aproveita-se dos habitantes para crescer e engordar para submeter e subjugar Rostos sobretudo rostos cansados vivem na cidade que cansa Cansou os donos das vozes que me odeiam e que fazem ferver esta memória Vou comprar um caderno e uma caneta Prefiro isso aos medicamentos Não prescindo da minha saúde e sei que esta loucura vive agora em mim como a cidade Quero dar cabo da cidade e da minha loucura Vou destruir-lhe as entranhas e convoco para o combate estes jovens enamorados que ainda escutam o coração Que merda E agora asneiras porque são palavras como qualquer outra Merda e mais merda para a cidade que destrói Merda para a cidade das vozes das doenças e dos amigos que envelhecem e se deixam derrotar sem combater





28 de Março 2012



Preciso de respirar


Preciso de respirar A cidade não deixa Vou partir Depois deste dia, vou-me embora daqui Se nada me prende e tudo me perturba, se as vozes não me largam e não se calam, vou partir Tudo depois deste descanso está igual, imóvel, caótico, quente, metalizado, claustrofóbico, sujo, poluído, velho, gasto, carcomido e cinzento A cidade nefasta Vingo-me nela com esta oferenda de palavras A cidade não é solidária, a cidade é coisa, é coisa gigante e como coisa gigante que é desumaniza quem a percorre e quem dela se tenta alimentar Virar a cidade ao contrário de pernas para o ar não vai resolver o problema Os seus interiores vão esventrar ainda mais as entranhas da terra As mais altas construções da cidade vão ferir de morte o que resta do ambiente Esgotos a céu aberto, canais subterrâneos, túneis e as catacumbas obscuras das mais antigas lembranças da cidade ficarão a céu aberto, serão a nova equação caótica por onde teremos de caminhar, de viver e de sobreviver Com esta reviravolta a cidade não se destruirá mas destruirá quem nela habita A voz que me fala tem rosto de menina jovem com olhos grandes, negros, pele clara e cabelo roxo escuro cortado impecavelmente numa franja perfeita que cobre metade da testa São muitas as sardas que lhe invadiram as bochechas e o rosto fresco, redondo e sorridente Este foi o rosto da voz que me disse para virar a cidade ao contrário e para a colocar de pernas para o ar Estou cansado mas ficar nesta fila na paragem de autocarro a morrer devagarinho, isso é que eu não fico Antes virar a cidade ao contrário e continuar a caminhar Jogar com os pensamentos, deve ser isso que o medicamento é capaz de fazer Acalmar as ondas cerebrais que, umas atrás das outras, me cansam e acompanham A cidade ri de mim ou pelo menos assim parece É o que me dizem as pessoas apressadas que avançam automáticas e desgovernadas pelo passeio Estou febril, sinto-me febril com a cidade, mas ao contrário dela, que nunca se cansa, eu necessito repousar









29 de Março 2012



Tudo parou


Tudo parou Avanço por entre postes e candeeiros de rua Avanço pelo meio das pessoas perdidas e paradas Tudo parou menos a cidade porque eu não parei A cidade serve-me os seus habitantes como estátuas neste gigantesco museu a céu aberto O planeta gira pois o sol dá conta que a manhã termina As nuvens tapam-no e destapam-no por sobre os prédios O ruído da cidade parou como as pessoas, parou o ruído e as viaturas e agora a cidade é o maior museu que já visitei Os animais citadinos estão petrificados como nos anúncios e documentários em que a câmara fornece o único movimento possível Aqui não se trata de um anúncio ou filme ou documentário A cidade, com um toque similar ao de Midas transformou em estátuas todos os que nela habitam, excepto eu Liguei à Rute o telefone toca e não atende Liguei ao Arnaldo e ao Carlos Alberto e o mesmo aconteceu Estou receoso Será que se ligar ao meu filho Arsénio ele me responde ou também ele estará petrificado E as crianças, e a Laura e a minha irmã Isabel, como estarão Será que sofrem todos da mesma recente maleita da cidade Assim acontece quase sempre As vozes chegam devagar, aconchegantes, falam de coisas aparentemente banais e inofensivas e falam também de outras menos banais e inofensivas e depois, após as primeiras horas da manhã, eis que me dominam o pensamento de tal forma que me transformam completamente o dia fazendo estalar e aumentar esta minha aparente loucura Hoje resolveram começar por me dizer para caminhar sem rumo pelas avenidas e observar o movimento descompassado e mecanizado dos seus viajantes Observei o caos em que a vida da cidade se gosta de espreguiçar apenas para fazer de conta que ainda me preocupo em tentar encontrar algum sentido para esta minha forma de loucura Vejo mas não acredito no que vejo Toco nas pessoas e elas não me sentem, não se mexem, não pestanejam Respiram, os peitos dão sinal Os corações dos habitantes não pararam de bater Muitos foram os dias e principalmente as noites em que tinha medo de adormecer Não sabia como o coração e os pulmões podiam continuar acordados enquanto nós dormimos, enquanto descansamos Tive pesadelos terríveis em jovem pois acreditava que o coração podia adormecer se eu não lhe desse ordens para bater e eu morreria a dormir Porque sabemos como acordar Porque acordamos Quem nos fornece essa ordem secreta para terminar o sono e dar início à aventura de mais um dia Quem ordena aos pulmões que mantenham o seu ritmo para conseguirmos respirar, para conseguirmos viver Porque não dormem os pulmões, o coração e tantos outros órgãos de quem dependemos Porque não descansa o cérebro, como consegue ele ir mantendo os sistemas a funcionar até ao fim As insónias que tive ao pensar demasiado nestas questões Fico mais descansado por saber que os milhões de habitantes estão apenas congelados neste instante e pertencem a um qualquer sono que as quer manter assim Maldita cidade que me transformou neste ser doente com imagens e vozes e rostos a invadirem-me todos os instantes da vida As imagens impossíveis que este rosto me descreve só podem acontecer porque vivem na mente de alguém a quem a loucura invadiu E se todos pararam, porque me movimento eu




Antes da cidade



Começar uma nova história. É uma aventura.
Maior ainda pelo tempo em que as anteriores me mantiveram ocupado.
Sinto esses Momentos demasiado perto. Estão ainda demasiado presentes.
Mas é tempo de reinventar... uma outra história... numa cidade.