23
de Março 2012
Abri a porta
Abri a porta Na avenida o caos habitual Os animais
metálicos tentam chegar aos destinos mas não avançam mais que uma mera dezena
de metros por minuto O calor associa-se ao cheiro urbano do tráfego diário
Preciso do café da manhã, de passar os olhos por um pedaço de notícia, mas para
quê se elas se repetem sempre tão iguais As pessoas nos passeios são um
formigueiro humano que avança como os animais metálicos Em rituais ensaiados,
sobem pela direita, descem pela esquerda numa interiorizada cópia do sistema
rodoviário, derretem-se no asfalto, derretem-se na calçada A ordem de todas as
coisas, a ordem desordenada da lei do mais forte a ordem do distraído que
segue alheio à rotina, a ordem dos animais semeados perdidos na beira dos
passeios, a ordem dos semáforos dos sinais visuais e sonoros das sirenes dos
que querem orientar a ordem dos animais metálicos depositados aleatoriamente
nos passeios entre espaços impossíveis a ordem da ousada condutora apressada
de filhos carregados de filhos empurrados de filhos carregados com quilos de
mochilas às costas sabedoria ocidental a ordem dos funcionários camarários
que limpam que desesperam quem deseja avançar e segue atrás do gigante
triturador a ordem dos relógios a ordem da discussão familiar no banco da
frente a ordem da fome que se mata com a palhinha introduzida no pacote de
leite acastanhado adocicado amigo no banco de trás a ordem dos pássaros
metálicos gigantes que guincham os últimos segredos nos últimos segundos da
viagem ao passar mesmo por cima da avenida Não sei como aqui se dorme se
acorda se descansa A ordem dos mendigos e dos loucos que como mendigos pedem
a quem passa dois ou três segundos de atenção a ordem desordenada dos
esperançosos estudantes com brilho nos rostos que suspiram horas perdidas nas
desalinhadas filas dos transportes A ordem das estações debaixo do solo a
mesma estação que os espera no final da viagem a ordem de tudo aquilo que se
constrói cada dia desde que se acorda desde que o vento bate nas cortinas da
janela mal fechada dos elevadores que não trabalham a ordem gasta das
fachadas dos velhos edifícios da avenida dos cafés que lhe conhecem os vícios
de todos os viciados das árvores hipóteses verde esperança que respira
citadina citadinas como todas estas que se perfilam ao subir a calçada
apinhada A Rute está atrasada como sempre mais uma vez Tem sido assim nestes
últimos dias Já cansa tanto atraso Obedece a outras ordens, os seus lugares já
são outros e não responde às mensagens A Rute preocupa-me pois já não é capaz
de falar sobre as coisas Agora só escuta É mau quando só escutamos A Rute não
devia pensar tanto na vida O pessoal dos correios esteve aqui ontem a fazer uma
mini manifestação de protesto contra o encerramento de mais uma dependência
Andam a fechar tudo, a acabar com tudo A Rute estava habituada a fazer este
trajecto e esta vida há mais de trinta e oito anos e agora querem enviar os
trabalhadores para muito longe daqui, para outras estações e dependências muito
afastadas Aos mais antigos convidaram acenaram com a reforma antecipada, ou
então que desaparecessem A Rute nunca mais chega e não atende o telemóvel O
Carlos Alberto tinha-a convidado para o cinema mas ela nem assim se mexeu A
boca não deixa, os olhos não deixam mas, acima de tudo, a idade não deixa Vou
sentar-me ali junto ao jardim Os bancos estão gastos como o tempo, como eu,
como os cães vadios que parece que nascem por aqui Vou ligar ao Arnaldo, pode
ser que já tenha acordado Nada Que bem que me sabe este café Estamos todos cada
vez mais sós, como a Rute, como o Arnaldo, como o Carlos Alberto e como eu
Caramba Mas que raio de conversa de velhos Tudo parece velho, gasto, louco,
cansado Os putos correm com as mochilas às costas Faltaram à escola Devem
gostar do que por lá ensinam Preferem correr em grupos, vadiar por aqui Que
inveja lhes tenho, como gostava de poder ser como eles, pecar como eles
Maldição do tabaco, malabaristas do eu contra o mundo que não os conhece Não
sabem como era antigamente, não lhes interessa o ontem, nem o amanhã e o hoje,
para alguns, veste-se de tristeza, de fome e de porrada Ordens dadas umas atrás
de outras que devem cumprir Está bem está Fartinhos dessa merda toda, das
conversas desses chatos que só moem a cabeça A utilidade de um beijo é que
devia ser ensinada, a utilidade de uma falta bem dada, de andar de metro à
deriva das estações, de fugir A Rute não está bem Vai ter de ser ela a ligar Já
não me apetece este banco Vou continuar a caminhar pela avenida mas aborrece-me
o não conseguir parar de pensar, parece que todas as minhas ideias e
pensamentos têm uma voz e um rosto Todas falam e é um cansaço terrível logo ao
fim da manhã Vejo-as com caras de velhas que não se calam, vozes com caras de
funcionários pálidos de óculos e de pele baça sentados em cadeirões e que não
param de teclar, a mão direita agarra e brinca com um telemóvel esperando que
toque, esperando não sei muito bem o quê Vejo vozes com caras, mais de mil e um
rostos, rostos de putos, de jovens, de operários fabris, de pastores, rostos de
políticos, de escritores, de psiquiatras e de empregados de café, vejo uma voz
com a cara de uma pequena criança que ainda mal consegue andar, em todas as
minhas vozes eu vejo um rosto É uma canseira Por isso olho para os carros que
não avançam na avenida, olho para as montras gastas, para todo este povo que se
movimenta O que será que pensam, porque será que pensam, ou não pensam, o que
os preocupa, porque se preocupam Precisava de descansar mas não consigo resistir
ao apelo das escadas do prédio, descer e vir para a avenida passear Outros como
eu também andam por aí meio perdidos, sentam-se, distraem-se com conversas
fúteis sobre coisas inúteis, sobre cada coisa mais inútil que chega a meter dó
Detesto quando as vozes me dizem estas coisas Mais valia dar uso à receita que
me passou o colega do meu filho Tanta gente fala e pensa saber sobre tanta
coisa, pensa saber sobre tudo e sobre mais alguma coisa, até dói E a Rute que o
diga Não me responde Continua com o telemóvel desligado Os autocarros seguem
tão apinhados que é difícil perceber como se movimentam Avançam alguns metros e
param junto aos outros metálicos animais que estão anichados a aguardar a
ditadura dos semáforos A cidade caótica engole-os, esvaziou-lhes as almas Vou
ligar ao Arnaldo mais uma vez São quase dez e meia da manhã O que terá andado
ontem a fazer para ainda estar a dormir Nada Desisto Quero lá saber Eles depois
que me liguem O avião passou tão rente ao prédio que o fez tremer Vou descer a
avenida até ao teatro São pouco mais de quatro quilómetros Gosto de passar
junto ao relvado que se estende à frente do edifício Os estudantes
universitários gostam de se estender ali como se estivessem na praia e eu gosto
de os ver assim Depois regresso ou então continuo o percurso até ao estádio
universitário Vou recordar os meus tempos de corredor Divertia-me a correr como
criança, sujava os pés e as pernas nos corta-matos e alcançava sempre a meta na
primeira metade da tabela Nunca desisti uma única prova, conclui-as todas Os
carros continuam parados Que loucura Ninguém se mexe no trânsito caótico O que
será que os impede de largarem a porcaria dos automóveis e caminharem ao longo
da avenida Trago aqui na carteira a receita por aviar, vou deixar de ser
casmurro e vou arranjar os comprimidos O meu Arsénio está cansado de me avisar
e ficou ofendido com a minha teimosia Deixá-lo Lembro-lhe que tem a quem sair
Detesto quando as vozes ditadoras me dizem estas coisas Pararam de falar comigo
por instantes Devo estar a melhorar Era bom se assim acontecesse Na
brincadeira, o rapaz até me disse para eu começar a escrever, para apontar num
caderno tudo aquilo que as vozes me dizem A minha mão não iria conseguir parar
tantas são as palavras abertas no interior da cabeça E depois, onde ficava
tempo para os passeios, para as conversas com a Rute, com o Carlos Alberto e
com o Arnaldo Eu não quero saber o que me dizem as palavras, a maior parte do
tempo são disparates como este agora Disparate, um disparate pegado Querem lá
ver que tinha de andar sempre carregado com um caderno e caneta para apontar
todos os pensamentos Tenho lá cabeça para isso e não quero saber do que as
vozes me dizem, estas vozes com rosto que nunca me abandonaram desde que me
conheço Uma coisa prometo Vou comprar um caderno e uma caneta, não são pesados
e passam-me a fazer companhia Pode ser que depois, com o medo e a vergonha, as
chatas das palavras definhem Não ia precisar de comprimidos Talvez a ideia do
Arsénio tenha pernas para andar, quem sabe Esta voz tem cara de senhor forte,
muito forte, cabelo curto, grisalho, bigode, pescoço curto e vigoroso, olhos
castanhos, olhar sério e ausente O que é que isto interessa Filas intermináveis
de pessoas nas paragens dos autocarros Que dia A esta hora, noutras ocasiões,
não é costume estar tanta gente à espera A cidade consome e mal trata e as
faces de todos os que esperam estão verdes e amareladas, derrotadas por um
cansaço eterno que as faz desaparecer Esta é uma voz com rosto de idosa, meio
andrógina, de cabelo curto, óculos, ar adoentado com minúsculos olhos escuros
Consigo ver o que tem vestido, um casaco de tom acastanhado, calças mais
escuras que o casaco, vincadas, sapatos masculinos com pequeno salto e um lenço
largado à volta do pescoço de cor beije Mais um avião enfurecido desce farto da
viagem, ansioso por aterrar Nesta zona da avenida as esplanadas enchem-se de
idosos que engolem cafés, lêem jornais e olham vazios para um ponto distante
24
de Março 2012
Escrever qualquer coisa todos os dias
Escrever qualquer coisa todos os dias A cidade
continua a engolir os habitantes Como formigas, entram nas entranhas da terra
pelas estações do metropolitano, entram nas carruagens apinhadas, aguardam o
destino, aguardam sentados, aguardam de pé, apertados, ensanduichados uns
contra os outros, olhares distantes, ausentes, o mendigo mendiga, a criança
adormece ao colo da mãe, o ruído do gigante vermelho que transporta as formigas
nos túneis, que os envelhece, que não tem coração nem intestinos, nem
entranhas, só corpo e função e velocidade A cidade vive de quem nela mora, de
quem a visita, de quem a procura, de quem não a suporta, de quem a deseja mais
do que a vida, de quem a desconhece mesmo que nas avenidas e praças se
espreguice há tantos anos que já lhes perdeu a conta, e são tantas as cidades
dentro da cidade
25
de Março 2012
A cidade doente
A cidade doente, de habitantes doentes vencidos pela
rotina, pela ilusão de bem-estar, pelas oportunidades de sucesso e pelo estilo
de vida que a cidade lhes vai acenando A cidade que já não deslumbra Desespero
como os automobilistas desesperam no trânsito caótico e eu desespero porque não
desistem Deviam saltar das máquinas que os consomem, abandoná-las, seguir novos
caminhos, outras vontades e destinos Desespero pelas horas e dias inúteis em
que se consomem estas vidas numa alienada realidade que corrói a esperança e
desesperam Envelheci A Rute, o Arnaldo e o Carlos Alberto envelheceram e a
cidade sempre presente, animal feroz que prende os movimentos, que agrilhoa os
que tentam avançar mas que, como eu, lhe escutam as vozes
26
de Março 2012
Vingo-me na cidade
Vingo-me na cidade opressora com palavras
Desumanização de betão e asfalto, de ruído e poluição, do anonimato que recheia
a urbe onde não há silêncios A cidade formigueiro, ávida, cruel,
indisciplinada, escura e cinzenta onde até o céu se deixa contaminar e altera o
tamanho dos sonhos Sigo na avenida pelo passeio cheio de quem anda perdido,
despido, sem planos e de rostos fechados A cidade atrofia e as quedas são em
maior número que os voos Os prédios crescem, nascem, estão cada vez mais
mortos, sujos velhos e gastos Orientam a cidade como um polvo colossal que se
expande e se dilata totalmente desorganizado, descoordenado, desorientado, que
se expande como um colossal bloco demente, uma entidade viva deslizante que
aniquila toda a natureza envolvente Não se vive apenas se sobrevive Descarrego
a fúria na cidade porque ela penaliza e não simpatiza com quem a habita A
cidade não aceita o erro, descarna a essência de quem se move nos seus
passeios, nas ruas e vielas, nas pracetas, largos e nas avenidas Se escrevesse
ficava vazio, cansava-me, penalizava-me e assim é bem melhor pois avanço com o
ruído das vozes e a companhia dos seus rostos enervantes Quem me fala é uma
mulher com cerca de quarenta e seis anos de idade, pele manchada e testa
enrugada, instável, neurótica com um olhar fatigado de cabelo desalinhado e que
veste roupa que já não pertence a estes dias
27
de Março 2012
Os dias e as noites
Os dias e as noites descrevem ruídos que sobem de
tom e que descrevem conversas com nuvens negras e dores que descrevem
indecisões e inícios atribulados e que vontade tenho de acabar com todos os
edifícios que a cidade viu nascer todas as pontes todos os lugares acabar com
tudo de uma vez por todas Acabar com a cidade cansada com todos os castelos e
palácios e silêncios e muralhas A cidade cansa e as palavras continuam a
aparecer e eu vejo O rosto de quem me fala com esta voz agressiva tem lábios
finos e olhos de quem suspeita Uma voz que ecoa e ressoa e enerva Regressam as
palavras do Arsénio a insistir a remorder a avisar Vai aviar o medicamento pai
deixa de ser casmurro e vai aviar o medicamento A farmácia brilha como uma
chama incandescente que saltar do seu interior como um relâmpago e destrói tudo
em redor Acabou o passeio e nasceu o asfalto Até ao lado de lá da avenida
estende-se a passadeira a desenhar um caminho Entre as duas vias o parque
estende-se longitudinalmente acompanhando a avenida Páro junto ao pequeno lago
que faz parte deste rectângulo de verde Vou desligar o botão que fará
desaparecer a cidade que a fará desaparecer para todo o sempre como se nunca
tivesse existido Manifesto a minha preocupação por estes pensamentos Esta voz
nervosa tem rosto de senhora com sobrancelhas arranjadas rosto fechado olhar
inquieto Uma voz que soa sofrida com a cidade As nuvens tapam o sol mas o calor
mantém-se Os automóveis continuam a apinhar as ruas e as avenidas sem avançar
num cansaço permanente que gasta as vidas no tráfego eterno Tráfego diário
caótico desesperante Quero ver o mar e neste pequeno lago só vejo a água
esverdeada com pequenos toques rubros aqui e acolá Salvem estes peixes
Tirem-nos daqui e tirem-nos a todos da cidade Tirem toda a gente da cidade e
tirem de uma vez por todas a cidade daqui Tirem-me este cenário da frente e
tirem-me as vozes de dentro de mim As pessoas seguem cinzentas e automáticas
pelo parque Avançam na avenida pelos passeios e acessos a viadutos e a pequenos
túneis com escadas por onde descem e sobem mas não avançam seguras Escuto e não
queria escutar Estou quase a chegar onde o sinal vermelho manda parar e onde
mais nada se move Os peões atravessam a avenida passando por cima dos
automóveis que pararam e tapam a passadeira Saltam por cima das viaturas que
preenchem a cidade de uma ponta à outra Saltam os condutores e passageiros de
dentro das viaturas e começam a discutir uns com os outros Regressam ao banco
dos seus automóveis iguais pois ninguém muda Somos o que somos e a cidade acaba
por aniquilar o que de bom ainda existia em cada um de nós É um tormento
Avançamos pela cidade num passo cada vez mais lento e demorado Mesmo assim
somos mais rápidos que o trânsito caótico apático e claustrofóbico É uma loucura
São agora mais de vinte os rostos destas vozes Uma é melodiosa outra estridente
Uma enervante outra irritante Uma tem rosto de voz delicada e destaca-se das
demais Mas que interesse poderá tudo isto ter para alguém Que interesse Nenhum
absolutamente nenhum Pode não ser o real pode ser apenas uma mera ideia mas eu
ficaria mais aliviado se nenhuma destas vozes me enervasse e se alguma delas
fosse capaz de matar esta batalha de linguagens que nasceu dentro de mim Acabem
com isso Caluda Raios vos partam Escrever isto para quê para ordenar o que não
se ordena o que não tem ordem Escrever isto para tornar límpido o que mata
amputa e destrói Como esta entidade viva chamada cidade que mata amputa e
destrói Vou sair do parque vou continuar Na avenida nada mudou Tudo está parado
imóvel ruidoso Passo para o lado de lá desta imobilidade e deste lado do
passeio olho para trás para aquilo que percorri Tudo parado Milhares de
viaturas de onde saem milhares de pessoas que agora olham por cima dos tectos
tentando entender a razão para esta inércia Vozes estalam cada vez mais
violentas no centro da cidade Avanço na direcção do teatro mecanicamente Não
sei porque me preocupo com a cidade É uma vontade que me morde e eu obedeço-lhe
Com dificuldade vou calando este ruído intenso que me massacra Esta voz tem
rosto de mulher jovem e segura que desenvolve e descreve o seu raciocínio num
tom nasalado As maças do rosto são marcadas e o cabelo cuidado As suas palavras
irritam mais do que magoam Ao longe vejo uma farmácia vejo duas vejo três e não
cedo Não ainda Sai de casa para me abandonar no ambiente da cidade até não
poder mais A cidade que já não tem nada para me oferecer a não ser a sua
própria existência É isso que me permite existir e que permite que o desabafo
exista e os silêncios não Está mais perto a visita ao farmacêutico e aqui estão
os jovens Felizmente que alguns parecem não fazer parte deste universo
Abandonaram as salas de aula abandonaram as paredes abandonaram os corredores e
são verdes como a relva onde repousam Quero ser assim também ter a idade que é
a deles que já foi a minha e que a cidade engoliu Esta é a voz de um homem
africano de olhos negros e pequenos com sobrancelhas carregadas barba mal
aparada cabelo curto e testa vincada com fortes rugas de expressão É arrogante
e fala como se entendesse tudo sobre todos os assuntos e sobre todas as
matérias Não erra tudo sabe e tudo compreende Farto estou verdadeiramente farto
destas vozes e destes rostos que me falam Vou ser um pouco desta relva para
poder deixar de dizer mal da cidade mas não consigo Estou zangado com ela e
quero continuar a desabafar desta maneira sobre a cidade Repetidamente
desabafar Não gosto da cidade Ela aproveita-se dos habitantes para crescer e
engordar para submeter e subjugar Rostos sobretudo rostos cansados vivem na
cidade que cansa Cansou os donos das vozes que me odeiam e que fazem ferver
esta memória Vou comprar um caderno e uma caneta Prefiro isso aos medicamentos
Não prescindo da minha saúde e sei que esta loucura vive agora em mim como a
cidade Quero dar cabo da cidade e da minha loucura Vou destruir-lhe as
entranhas e convoco para o combate estes jovens enamorados que ainda escutam o
coração Que merda E agora asneiras porque são palavras como qualquer outra
Merda e mais merda para a cidade que destrói Merda para a cidade das vozes das
doenças e dos amigos que envelhecem e se deixam derrotar sem combater
28
de Março 2012
Preciso de respirar
Preciso de respirar A cidade não deixa Vou partir
Depois deste dia, vou-me embora daqui Se nada me prende e tudo me perturba, se
as vozes não me largam e não se calam, vou partir Tudo depois deste descanso
está igual, imóvel, caótico, quente, metalizado, claustrofóbico, sujo, poluído,
velho, gasto, carcomido e cinzento A cidade nefasta Vingo-me nela com esta
oferenda de palavras A cidade não é solidária, a cidade é coisa, é coisa
gigante e como coisa gigante que é desumaniza quem a percorre e quem dela se
tenta alimentar Virar a cidade ao contrário de pernas para o ar não vai
resolver o problema Os seus interiores vão esventrar ainda mais as entranhas da
terra As mais altas construções da cidade vão ferir de morte o que resta do
ambiente Esgotos a céu aberto, canais subterrâneos, túneis e as catacumbas
obscuras das mais antigas lembranças da cidade ficarão a céu aberto, serão a
nova equação caótica por onde teremos de caminhar, de viver e de sobreviver Com
esta reviravolta a cidade não se destruirá mas destruirá quem nela habita A voz
que me fala tem rosto de menina jovem com olhos grandes, negros, pele clara e
cabelo roxo escuro cortado impecavelmente numa franja perfeita que cobre metade
da testa São muitas as sardas que lhe invadiram as bochechas e o rosto fresco,
redondo e sorridente Este foi o rosto da voz que me disse para virar a cidade
ao contrário e para a colocar de pernas para o ar Estou cansado mas ficar nesta
fila na paragem de autocarro a morrer devagarinho, isso é que eu não fico Antes
virar a cidade ao contrário e continuar a caminhar Jogar com os pensamentos,
deve ser isso que o medicamento é capaz de fazer Acalmar as ondas cerebrais
que, umas atrás das outras, me cansam e acompanham A cidade ri de mim ou pelo
menos assim parece É o que me dizem as pessoas apressadas que avançam
automáticas e desgovernadas pelo passeio Estou febril, sinto-me febril com a
cidade, mas ao contrário dela, que nunca se cansa, eu necessito repousar

29
de Março 2012
Tudo parou
Tudo parou Avanço por entre postes e candeeiros de
rua Avanço pelo meio das pessoas perdidas e paradas Tudo parou menos a cidade
porque eu não parei A cidade serve-me os seus habitantes como estátuas neste
gigantesco museu a céu aberto O planeta gira pois o sol dá conta que a manhã
termina As nuvens tapam-no e destapam-no por sobre os prédios O ruído da cidade
parou como as pessoas, parou o ruído e as viaturas e agora a cidade é o maior
museu que já visitei Os animais citadinos estão petrificados como nos anúncios
e documentários em que a câmara fornece o único movimento possível Aqui não se
trata de um anúncio ou filme ou documentário A cidade, com um toque similar ao
de Midas transformou em estátuas todos os que nela habitam, excepto eu Liguei à
Rute o telefone toca e não atende Liguei ao Arnaldo e ao Carlos Alberto e o
mesmo aconteceu Estou receoso Será que se ligar ao meu filho Arsénio ele me
responde ou também ele estará petrificado E as crianças, e a Laura e a minha
irmã Isabel, como estarão Será que sofrem todos da mesma recente maleita da
cidade Assim acontece quase sempre As vozes chegam devagar, aconchegantes,
falam de coisas aparentemente banais e inofensivas e falam também de outras
menos banais e inofensivas e depois, após as primeiras horas da manhã, eis que
me dominam o pensamento de tal forma que me transformam completamente o dia
fazendo estalar e aumentar esta minha aparente loucura Hoje resolveram começar
por me dizer para caminhar sem rumo pelas avenidas e observar o movimento
descompassado e mecanizado dos seus viajantes Observei o caos em que a vida da
cidade se gosta de espreguiçar apenas para fazer de conta que ainda me preocupo
em tentar encontrar algum sentido para esta minha forma de loucura Vejo mas não
acredito no que vejo Toco nas pessoas e elas não me sentem, não se mexem, não
pestanejam Respiram, os peitos dão sinal Os corações dos habitantes não pararam
de bater Muitos foram os dias e principalmente as noites em que tinha medo de
adormecer Não sabia como o coração e os pulmões podiam continuar acordados
enquanto nós dormimos, enquanto descansamos Tive pesadelos terríveis em jovem
pois acreditava que o coração podia adormecer se eu não lhe desse ordens para
bater e eu morreria a dormir Porque sabemos como acordar Porque acordamos Quem nos
fornece essa ordem secreta para terminar o sono e dar início à aventura de mais
um dia Quem ordena aos pulmões que mantenham o seu ritmo para conseguirmos respirar,
para conseguirmos viver Porque não dormem os pulmões, o coração e tantos outros
órgãos de quem dependemos Porque não descansa o cérebro, como consegue ele ir mantendo
os sistemas a funcionar até ao fim As insónias que tive ao pensar demasiado nestas
questões Fico mais descansado por saber que os milhões de habitantes estão apenas
congelados neste instante e pertencem a um qualquer sono que as quer manter assim
Maldita cidade que me transformou neste ser doente com imagens e vozes e rostos
a invadirem-me todos os instantes da vida As imagens impossíveis que este rosto
me descreve só podem acontecer porque vivem na mente de alguém a quem a loucura
invadiu E se todos pararam, porque me movimento eu